A Igreja portuguesa está quase como o Governo. Até os ministros de Deus disparam críticas e opiniões políticas contrárias. Porquê
A Igreja é uma entidade muito plural e repartida na sua responsabilidade, mais do que a sociedade. Basta lembrar que as dioceses são autónomas e as paróquias são pessoas jurídicas independentes. Se isto é uma vantagem, porque não repousa sobre uma mesma pessoa jurídica, também poderá dar a quem vê de fora uma ideia de grande dispersão.
Que é contrária aos princípios da Igreja?
A unidade é a nossa busca principal, mas não pode ser o anular da diferença e da margem de autenticidade que as pessoas individuais e jurídicas têm de se exprimir. A unidade na doutrina é possível nas grandes atitudes frente à sociedade e para isso é que existe a conferência episcopal. No entanto, não tenho visto nada que pusesse em questão essa busca da unidade na pluralidade da diferença. Pode haver sensibilidades neste tomar de posições em relação à política e à sociedade, mas todos estão de acordo que não é missão da Igreja meter-se directamente na questão política a não ser num caso muito extraordinário.
Como o Papa já referiu?
O Papa acaba de admitir que sim, que em situações-limite a Igreja pode tomar posições políticas. Mas não tem sido essa a nossa prática, a não ser em situações muito concretas ou particularmente exigentes em que essas sensibilidades podem ter expressão. Não vi nada que quebre esta unidade fundamental, embora, com toda a franqueza, haja declarações públicas [de religiosos ] que eu não faria.
Acha que a Igreja não deve ter certas posições?
O princípio geral é de que não se deve meter na política, mesmo que tenhamos uma dificuldade em definir que âmbito é esse. Quando falo que a Igreja deve ser isenta e discreta nas questões políticas, refiro-me à política directa e às decisões do Governo. É evidente que, às vezes, nos apetecia falar como cidadãos...
O que tem acontecido com declarações suas!
... Mas como instituição, temos de a preservar. Até porque o nosso campo é outro, mesmo que nos bastidores apanhemos as consequências das políticas concretas. O político é mais vasto do que isto e diz respeito a todo o bem da sociedade. É nesse sentido mais global que, aí sim, temos uma palavra a dizer, na medida em que somos uma voz e temos um auditório numeroso que espera pela nossa palavra e orientação. Quando há uma tomada de posição mais acutilante sobre política concreta, temos um conjunto de vozes a aplaudir-nos e outro a denunciar- -nos. Por isso, é preciso uma grande isenção, que só se consegue tendo sempre muito em conta qual é o objectivo da nossa missão.
Já o Concílio Vaticano II pedia aos católicos para terem mais intervenção na sociedade.
A isenção política não é uma imposição do poder civil, é uma opção nossa para salvaguardar a especificidade da nossa missão. Se nos metemos na política directa, temos de sofrer as consequências dos que estão na política directa e não podemos reivindicar impunidade.
A Igreja não está impune, mas os políticos estão. É isso que quer dizer?
Não deviam estar nem estão. Não podemos é metê-los na cadeia cada vez que fazem erros, até porque para isso há punição em democracia.
Nos casos de pedofilia, muitos dos padres que pecaram tiveram penalização. O mesmo deveria acontecer aos políticos?
Esse é um outro tema para onde os holofotes apontaram todos. São casos tristes para nós - bastava um para termos muita pena -, porque é uma coisa muito feia. Mas, em termos globais estatísticos, os casos são apenas de 0,0 não sei quanto por cento. Talvez este sofrimento por que a Igreja tem passado, e eu compreendo que a sociedade se indigne porque se havia alguma entidade de que não se devia esperar uma coisa dessas era da Igreja, alerte a sociedade como um todo para a erradicarmos com uma política de família e de educação.
O actual Papa foi quem pagou pelos casos que aconteceram no pontificado de João Paulo II. Escapará a essa marca?
Reagiu com muita firmeza e, em certos casos, até nos surpreendeu, chamando as coisas pelos nomes, propondo regras muito rígidas e revendo, como está a acontecer, a própria legislação canónica das penas canónicas em relação a certos casos. O Papa tinha um velho conhecimento dos problemas e dos dossiers que passavam pela sua mão e alertava os episcopados. Esta questão é muito delicada e tão fora da nossa expectativa imediata que demorou algum tempo até os episcopados tomarem consciência dessa realidade.
Porquê?
Primeiro, pela delicadeza do assunto, que não é para remexer em público. Segundo, porque a única maneira de se ter conhecimento é pela denúncia das vítimas, o que por ser tão humilhante muitas vezes não queriam ser reconhecidas. Foi a brutalidade das revelações feitas sobretudo nos Estados Unidos que levou o resto do mundo a alertar-se para isso e ainda bem! Se esta mazela existe na Igreja, temos de a curar.
Como é que Portugal passou tão ao lado?
Não há casos que eu conheça - não quer dizer que não haja um ou outro - e penso que essa situação tem que ver com vários factores. O principal é haver um cuidado grande na selecção e na formação dos jovens padres e na detecção numa fase da juventude da vida do jovem daquilo que são fragilidades, e ajudá-las a corrigir. Depois, é uma qualidade básica do nosso povo respeitar as crianças. Eu temo é que esta publicidade suscite casos, porque, espontaneamente, não está na maneira de ser do nosso povo essa atitude. Qualquer português fica derretido diante do olhar de uma criança! Não excluo que porventura haja casos que tenham acontecido ou que ainda venham a revelar-se pois o pecado existe em todo o lado, mas por enquanto estamos isentos dessa vergonha.
Não receia que a WikiLeaks revele estes casos?
Não sei que telegramas é que o embaixador dos Estados Unidos mandou para lá! Eles informam tudo, desde a cor da gravata até ao cinema a que se foi.
O encobrimento da pedofilia no tempo de João Paulo II não vai obstar à canonização?
Não me pronuncio sobre isso. As únicas coisas que sei é o que diz este Papa, de resto não tenho nenhuma notícia. Tenho de reconhecer que, na hierarquia da Igreja, a primeira reacção foi a de evitar o escândalo. Isso reconheço que houve em geral, a começar no próprio Papa João Paulo II. O que estava errado nos casos que aconteceram foi não ter tirado esse sacerdote de qualquer contacto pastoral, mas deslocá-lo para outro lugar e voltar a repetir-se no segundo local.
Normalmente é a Igreja que pede sacrifícios. Agora, o Governo ultrapassa essa doutrina religiosa com a exigência económica. Sente o peso da "concorrência" do Governo?
Não, a Igreja não pede sacrifícios da mesma maneira porque não há conversão sem austeridade e sem exigência interior. Sou um observador atento - e tenho também mais meios de observação que o comum dos cidadãos - e o que se passa é que ainda estou perplexo pelo juízo global do que se está a passar. Penso que hoje há uma componente internacional que é muito complicada ,e como o mundo é uma aldeia até vemos Portugal ir vender títulos da sua dívida à China.
O que se passa com a economia portuguesa?
Na leitura que faço dos factos, penso que houve um momento em que se separou demasiadamente a relação estruturada durante décadas entre mundo financeiro e o económico, e a finança funcionava como um apoio e potenciador da economia. Dentro deste processo, há um momento em que o valor das moedas que eram caucionadas pelo ouro deixa de ser uma garantia do valor da moeda e passou a depender da saúde das economias. Esta autonomização da finança em si mesma como meio de ganhar dinheiro, e ao mesmo tempo com a oferta imensa, fez com que fosse impressionante o volume de dinheiro que passou a circular no mundo nos últimos anos.
É uma questão económica apenas?
Também tem que ver com a democracia, porque os partidos que estão no poder precisam de mostrar a obra feita e recorreram a esses mecanismos que dentro de uma normalidade regulada ia funcionando. Há um momento em que uma das peças do puzzle se escangalha e fica tudo de pernas para o ar. Eu não tinha noção de que Portugal pagava por dia um balúrdio ao estrangeiro por dever tanto dinheiro! O que me leva a crer que há também uma crise de sistema.
Do sistema capitalista em si?
Do sistema económico-liberal com que o mundo se organizou. Não significa que vá acabar, até porque não há alternativas experimentadas ou estudadas. O modelo totalitário também se desfez como um baralho de cartas e os que o defendem são os saudosistas de uma época. Há que inventar novas formas, mas, sobretudo, usar de prudência e objectividade nas decisões.
A Igreja terá de ter um papel no superar da crise económica?
A Igreja tem um papel, de criar na população uma atitude de esperança. Não tenho posições definidas sobre se as causas que nos levaram a esta situação eram evitáveis nem se as soluções apontadas são as melhores. Aí estamos no campo estritamente político. Até mesmo racionalmente tenho dificuldade.
Tem dificuldade porque não é racional?
Sim, mas tornou-se inevitável e agora é através da lei do orçamento que temos de ajudar as pessoas a viver com coragem e sem revolta. A revolta não leva a nada, temos de estar unidos para salvar o bem-estar das nossas populações. E aí a Igreja tem um papel.
Acredita que vai haver uma solução breve?
Só a longo prazo, porque não depende só de nós. Resta-nos a sensatez das decisões que vamos tomando e que já não são só nossas, porque, de cada vez que eles vão ao Conselho Europeu, vêm de lá com uma série de recados que, depois, têm dificuldades em implantar cá. Prevejo que a solução vai ser demorada e não vale a pena estarem com promessas fáceis demais porque, repito, não depende só de nós. Também prevejo que os mecanismos internacionais vão mudar muito e basta ver o caso da China, que está muito cautelosa.
Com base nas suas previsões parece não acreditar que este Governo tenha uma vida longa?
Democraticamente, é normal que tenha. O resto não sei prever.
Mas não o espanta que no próximo ano haja eleições legislativas devido a uma moção de censura do PSD?
E quem é que a vota?
Os partidos da oposição. Ou acha que estão comprometidos com este Governo?
Não sei. Se olharmos para o que se passou em Itália agora! Parecia evidente que Berlusconi caía, e nada. Aconteceu uma coisa que cá não se verificou, os deputados começaram a emigrar de um partido para outro.
Em Portugal aconteceria o mesmo?
Não é costume. Tem havido casos isolados de deputados que ficam como independentes, mas não mudam de partido.
Considera então que não vai haver uma maioria que derrube este Governo?
Não tenho a certeza de nada neste momento. É evidente que uma moção de censura supõe uma maioria para governar e no quadro actual quem é que faz maiorias? Faz maioria o PS com a esquerda toda; faz maioria o PS com qualquer dos partidos à sua direita. Numa moção de censura, o PS fica de fora. Portanto, as maiorias têm de ser ou à direita do PS, onde não há maioria, ou uma aliança dessa maioria à direita do PS com a esquerda, com o Partido Comunista e com o Bloco de Esquerda. É possível que possa acontecer, mas não tenho a certeza.
Acha que o PSD e o CDS não se aliarão para ter uma maioria na Assembleia da República?
Agora não têm! Estamos a falar de uma moção de censura que é votada no equilíbrio de forças do actual Parlamento.
Na sua leitura política, uma moção de censura não passaria porque não haveria nem aliança de direita nem de esquerda?
Não excluo que haja, mas não são fáceis os cenários. Isto também depende muito de se o PSD tem pressa ou não tem pressa de ser poder.
Acha que o PSD quer ser poder?
Acho que não tem pressa.
A Aliança Democrática irá regressar?
Eu tenho a intuição de que não irá regressar. Só se isto se complicar muito ou com a demissão do próprio Governo. Também podemos pôr este cenário, embora o nosso primeiro-ministro... Mas tenho a intuição de que a legislatura vai até ao fim, porque num momento destes uma crise política não é boa. É mais fácil ajudar quem está no poder.
A crise económica também afectou a receita da Igreja, com a baixa no nível de esmolas. É verdade?
Não. Não nos assustemos! O nosso povo é muito generoso e sempre que há um motivo directo existe participação. Veja-se o que aconteceu com o Banco Alimentar contra a Fome! Quando há um motivo directo, o povo português partilha. É evidente que neste momento as pessoas têm menos possibilidade de dar e as participações para a despesa da igreja ao domingo variam entre o gesto e a consciência objectiva de partilhar. Para o gesto, na altura de pôr uma moedinha, basta uma moeda; para o gosto de partilhar, é preciso pôr uma nota um bocadinho maior. Este segundo gesto sempre foi menos numeroso e só aumentou quando mudámos para o euro, porque ninguém reparava que um euro valia 200 escudos. De qualquer modo, ainda não tenho dados em relação à receita e não posso dizer se baixaram ou não.
Já se refez do impacto da sua afirmação sobre as mulheres católicas terem de pensar duas vezes antes de se casar com um muçulmano?
Espantou-me que num serão tão bonito no Casino da Figueira da Foz, onde se falou de tudo, a comunicação social só tenha pegado na última pergunta da noite! Um senhor não ficou contente com a resposta que dei e insistiu para que eu lhe desse orientações de comportamentos, porque, creio, teria um problema desses na família. Após fazê-lo, disse-lhe com um sorriso: "E cautela com os amores." Esse é um problema real, porque é uma cultura tão diferente, se não há um discernimento ou pelo menos um conhecimento do contexto e dos riscos em que vão meter-se. Eu não disse que não se casassem.
Fala-se muito do diálogo inter-religioso. Será possível, designadamente com o islão?
Não se podem meter os muçulmanos todos no mesmo saco... Tenho de confessar que o diálogo inter-religioso é muito difícil porque se é diálogo é simpático em vez de agressivo. Mas o normal é que as pessoas se fechem dentro da sua convicção e credo religioso.
Quem se fecha mais: os católicos ou os muçulmanos?
Há uma coisa que não podemos pedir que se mude só por fruto do diálogo: aquilo em que se acredita. É claro que posso mudar a minha fé se me converter, mas só por fruto do diálogo não se muda a fé. Só se for muito fraquita! Doutro modo, não mudarei aquilo em que acredito, sobretudo tendo em conta que tanto o catolicismo como o islão têm longas tradições, mesmo que no islão ainda seja a religião a comandar a totalidade da vida, da social à pessoal. Hoje, aposto mais no diálogo intercultural, sem excluir o diálogo inter-religioso, porque aí há coisas comuns. Creio que quando se começou a falar de diálogo inter-religioso na base estava a ideia do diálogo intercultural.
Os católicos e os muçulmanos não serão irredutíveis na sua aproximação?
Não, com irredutíveis não há diálogo possível. Nem inter-religioso nem intercultural!
Não está a acontecer agora uma abertura?
Está a acontecer com alguns grupos, mas não com a globalidade. Há muita gente, mesmo no mundo muçulmano, que está agora mais na mira pelo seu número e pelas posições fundamentalistas e exageradas que têm tomado, sobretudo, através da Al-Qaeda. Isso choca, mas não creio que o mundo islâmico do Ocidente fique com aquilo, porque a fé islâmica é muito simples. Tão simples que é inquestionável, e um muçulmano não faz espontaneamente o que um católico faz: pôr questões acerca da sua própria fé. Para isso é preciso uma grande evolução e estão numa fase de evolução que nós já fizemos há 300, 400 ou mil anos. É uma fé muito simples, e o muçulmano é naturalmente um homem bom, razão por que aquelas coisas do Alcorão que hoje serão interpretadas de uma maneira violenta não reflectem a sua afabilidade.
A comunidade muçulmana portuguesa não ficou um pouco crispada consigo?
Fizeram um esforço para não ficar. Por uma razão muito simples, é que há entre nós uma longa caminhada de simpatia e de relação normal. Penso que perceberam que não os agredi e que foi um facto muito mediatizado.
Mas não gostaria de ver Lisboa com mais minaretes do que os que já existem?
Lisboa com mais minaretes seria um regresso na história. O que gostaria era de ver mais torres de igrejas nas grandes cidades dos países muçulmanos. Acho bem que os nossos irmãos de outras religiões tenham aqui todos os direitos da nossa democracia, mas era preciso uma contrapartida mínima nos países onde são maioritários e têm o poder.
Que não existe?
Nada! Há muitos países nossos vizinhos onde se alguém se converter ao cristianismo tudo pode acontecer. Desde ser condenado à morte até ser expulso. Esta disparidade está a chocar o Ocidente e já estamos a sentir os primeiros sintomas dela. A senhora Merkel disse o que disse há um mês e em Inglaterra põe-se seriamente o falhanço da interculturalidade. É o Ocidente a reagir, o que não é bom porque é pôr achas em fogueira acesa.
Vamos ver repetidas as "cruzadas"?
Já estão a acontecer! Hão-de é ter outras expressões para além das que tiveram as cruzadas na Idade Média. Eu fiquei pasmado com a reacção de Angela Merkel, é nitidamente uma reacção a um problema interno!
A Igreja Católica sobreviveu dois milénios. Acha que em 2100, com as mudanças que estão a acontecer no mundo, ainda terá o mesmo perfil de instituição?
Há coisas perenes na Igreja que, se não deixar de existir, não mudam. Uma delas é a fé e a sequência comportamental desse sentimento, a que chamamos moral. Depois, há a estrutura apostólica, que é o baluarte e a solidez que hoje se exprime pelos bispos. Isso não muda, mesmo que se alterem pequenas formas de ser. No que se refere à adaptação ao tempo, é próprio da Igreja moldar-se às mais variadas circunstâncias sociais.
O desenvolvimento muito grande das neurociências não vai desfazendo a crença?
Só a dos que tinham pouca fé. As ciências, por mais avançadas que sejam, ainda não inventaram nada. O que têm feito é descobrir o que Deus criou!
A Igreja resistiu ao fim da missa em latim mas se, entre outras, a imagem bíblica de Adão e Eva for desconstruída o que acontecerá aos fiéis?
Em Roma ainda se fala latim! No que respeita a outras mudanças, se elas se derem, a Igreja resiste com certeza. Já passámos há muito tempo a fase de ler a Bíblia literalmente como se lê um jornal. Todos sabem que na Bíblia a verdade é sugerida e não é descrita. Tem estilos literários, tem uma simbólica riquíssima e é preciso compreender a ancestralidade daquelas culturas. Há uma coisa que na nossa cultura ocidental temos vindo a perder progressivamente, que é o valor do símbolo e da simbólica. E curiosamente somos obrigados a redescobri-la agora com a profusão da linguagem informática. Estive recentemente em Roma para o Conselho Pontifício para a cultura, que foi sobre as nossas linguagens, e vim de lá um pouco assustado.
Assustado com o quê?
Com os panoramas a médio e longo prazo do que será o mundo. Uma das coisas de que me apercebi foi que a linguagem que está a nascer é quase a reinvenção da escrita, daquele momento em que a humanidade transformou o dizer, o pensar e a fala em símbolos escritos. No Ocidente, perdemos muito o valor do símbolo, talvez devido à exactidão da ciência e da técnica e ao pragmatismo do racionalismo que invadiu a nossa cultura. Hoje, só os poetas é que ainda se vão safando com a simbólica... Ora é impossível ler a Bíblia sem ter uma estrutura simbólica. Eu não preciso de acabar com o Adão e a Eva porque, se eu não interpretar os capítulos primeiros do Génesis à letra, o Adão e a Eva não me incomodam nada, pelo contrário, têm uma riqueza de sugestão simbólica enorme. Às vezes há uma certa precipitação em pensar que podem substituir-se. Podem experimentar, mas não creio que seja fácil.
Acha que Deus perdoou a Saramago o livro Caim e as críticas ao Antigo Testamento?
Que Deus estaria disposto a perdoar Saramago, não tenho dúvidas nenhumas! Não sei é se o Saramago quis esse perdão. Eu fui um leitor assíduo de José Saramago e até admirador. Os grandes livros dele, eu li-os todos.
Inclusive o Evangelho?
Exactamente. Mas aí começa um bocado a sua decadência, é o livro que marca o fim daquela genica do José Saramago. O Caim, francamente, é um livro decadente, e acho que o deviam ter aconselhado a não o publicar.
Do resto da obra, o que é que acha?
É um autor raro, porque introduziu um estilo e lê-se com muito agrado. Aliava muito bem a objectividade da investigação histórica à ousadia do estilo. Há quem não aprecie, mas eu gosto de José Saramago.
E o Alcorão, já leu?
Li, claro.